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Bibliomaníaca e melómana. O resto terão de descobrir por vocês!

Monday, April 29, 2024

"Quando Portugal Ardeu - Histórias e segredos da violência Política no pós-25 de Abril" de Miguel Carvalho (Oficina do Livro)

Já li e comentei vários livros do Miguel Carvalho neste blogue - Dentada em Orelha de Cão (Campo das Letras), Aqui na Terra (Deriva), Lúcio Feteira: A História Desconhecida (Quidnovi) e A última Criada de Salazar (Oficina do Livro) -, todos eles empolgantes trabalhos de jornalismo narrativo. Mas nada como o livro de que hoje falo. Este foi o primeiro dele que li a causar-me um impacto tal que me obrigou a olhar o país e o meu passado de forma completamente diferente, sobretudo os primeiros doze anos da minha vida, antes de Portugal fazer parte da chamada CE (Comunidade Europeia, como então se chamava). O livro surgiu em 2017, um ano de incêndios florestais e da tragédia de Pedrógão Grande e, por isso, na altura do lançamento e, principalmente da sua comercialização pouco meses depois, muitos leitores confundiram a temática tratada, julgando tratar-se a obra de fogos florestais, que foram pródigos naquela ano. Mas não era o o caso. Uma grande amiga, já falecida, até aventou a hipótese de os fogos do início do Verão escaldante daquele ano de 2017 terem sido criados para desviar a atenção do próprio livro e do que ele vinha recordar! Mas a verdade é que passei a olhar por um prisma completamente diferente o 25 de Abril de 1974 e os anos que se seguiram, num Portugal que não era nem estava tão pacífico como se pensava, após um revolução onde nem tudo foram cravos. Tinha ouvido falar, é claro, nas FUP-FP 25, mas nunca como uma ameaça de longa duração (para alguns), apenas como fenómeno pontual (para muitos, sobretudo as gerações mais jovens que não têm a memória dos acontecimentos) e, sobretudo nunca tinha ouvido mencionar sequer os grupos e facções que faziam parte de uma rede bombista de extrema-direita (espalhada por todo o país, mas com maior incidência a norte do Douro), arquipélagos incluídos. Não conhecia de todo a sigla MDLP, em casa “não se falava de política”, as pessoas calavam-se e calavam os outros, impondo uma constante omertà. O regime havia mudado, mas o medo persistia. E os ‘Corrécios’ eram um grupúsculo cujo líder ninguém queria ofender ligados ao crime organizado e cujo nome ninguém, no seu juízo perfeito, queria sequer pronunciar em público. Portugal, nessa altura, era tão seguro quanto a Venezuela, o Brasil ou o México, mas faziam-nos pensar que o país era tão tranquilo quanto a Suécia, a Noruega ou a Finlândia. Para ficarmos com uma ideia mais exacta daquilo que trata o livro, passo a citar a introdução feita por Miguel Carvalho que ele intitula de “Contra o Esquecimento”: «Este livro é jornalismo, não é História. Fala do “lado B” da revolução. Retrata personagens, recupera relatos, e desvenda segredos de uma época de inusitada violência política, entretanto apagada da memória histórica ou das “memórias consensuais” do regime saído da Revolução de Abril de 1974. Este apagão não é inocente. A versão dos vencedores de um determinado período histórico guarda sempre esqueletos nos armários, com receio de que possam deslustrar o retrato público, os consensos políticos e sociais e o unanimismo sobre os factos, trabalhado ao longo de décadas. A imposição dessa memória concordante, sem grandes fissuras, sobre a época de grande confronto ideológico, político e social de democracia insere-se, pois, numa estratégia de domínio. “O controlo da memória de uma sociedade condiciona largamente a hierarquia de poder”, escreveu o antropólogo social Paul Connerton, no famoso ensaio Como as sociedades recordam. Ora, se a utilização sistemática do aparelho de Estado para despojar os cidadãos da sua memória é típica dos totalitarismos, como devemos ba[p]tizar em democracia o discurso simplificado e a doutrina do esquecimento organizado para suprimir parte da História à memória dos povos? Falar desse período histórico português, escrever sobre ele, subverte, pois, a narrativa oficial sobre os acontecimentos, protagonistas e episódios dos primeiros anos da democracia. Os episódios, personagens, testemunhos e documentos que desfilam ao longo destas páginas, em boa parte inéditos ou resgatados a décadas de silêncios, nascem da obrigação jornalística de interrogar o passado e dar aos esquecidos da História o seu próprio direito ao passado, por muito que alguns deles só queiram ser lembrados pelo presente. São conhecidas as diversas narrativas sobre o 28 de Setembro de 1974, o 11 de Março e o 25 de Novembro de 1975, os casos República e Rádio Renascença, o cerco à Assembleia Constituinte, entre outros. Aqui, o obje[c]tivo jornalístico é esgaravatar o que terá ficado ofuscado. Nestas páginas moram memórias clandestinas, subterrânea, mutiladas, marginais. Nelas cabem acontecimentos desconhecidos, ou relegados para segundo plano, subje[c]tividades e sombras que, uma vez iluminadas, ligadas e coligidas, talvez possam ampliar o olhar e o conhecimento sobre os extremos e as controvérsias de um tempo. Subvertendo versões instituídas, sem maniqueísmos, nem ajustes de contas retroa[c]tivos, o jornalista pode e deve dessacralizar a memória cole[c]tiva, combater visões homogéneas e simplistas da História, estereótipos sobre o passado e desassossegar os mitos. Quanto mais o presente instrumentalizar o passado unificando-o e manipulando-o, mais deve o jornalismo combater o esquecimento, a amnésia e a mentira, sem que para tal tenha de impor uma Verdade. A memória é plural. Não há um passado, há passados. Recuperar e reabilitar testemunhos e documentos tidos por inconvenientes ou menores, trazendo-os da memória privada para o espaço público é, pois, uma obrigação. Diversos historiadores e outros estudiosos oriundos das ciências sociais insistem em contrariar o argumento da superação de traumas do passado como pretexto para impor políticas de esquecimento, revisionismos despudorados e memórias de reconciliação. Alguns consideram imperioso lembrar que a memória não é composta de factos, mas de interpretações. E essas não são inamovíveis. “Os historiadores não devem esquecer que são os cidadãos que fazem realmente a História, os historiadores apenas a dizem”, escreveu, a este propósito Paul Ricoeur. Consciente de que muitas democracias modernas fazem amplo uso do “esquecimento por imposição”, a pretexto da manutenção da “paz social”, o filósofo francês deixou-nos uma interrogação pertinente: “Não será a prática da amnistia prejudicial à verdade e à justiça? Por onde passa a linha de demarcação entre a amnistia e a amnésia? As respostas a estas questões não se encontram a nível político, mas ao nível mais íntimo de cada cidadão, no seu foro interior. Graças ao trabalho de memória completado pelo de luto, cada um de nós tem o dever de não esquecer, mas de dizer o passado, de um modo pacífico, sem cólera, por muito doloroso que seja”, afirmou. Quase 27 anos de jornalismo [33, agora] ensinaram-me que o passado nunca está esgotado e obriga a reinterpretar o que sabemos. O passado tem longa duração. Mexer nele é contrariar este eterno presente em que vivemos. Hobsbawn chamou-lhe o “presente contínuo”, François Hartog cunhou a expressão “presentismo”. Ambos constituem a maior ameaça à pluralidade da memória e corporizam, segundo Fernando Rosas, “um quotidiano sem qualquer relação orgânica com o passado público da época a[c]tual”. A desmemória é, pois, o resultado desse “apagão sele[c]tivo” onde o presente é apenas um lugar habitado pelo imediato, sem passado nem futuro. Parafraseando T.S. Elliott, o mundo torna-se então propriedade exclusiva dos vivos, sem lugar para os mortos. Mais de quatro décadas volvidas sobre a fundação do regime democrático [meio século agora] e das “amplas liberdades” o autor encontrou diversos obstáculos pela parte de zelosos guardiães de arquivos públicos. Obstáculos legais, claro, ou não fossem as leis e as normas jurídicas, por vezes, os maiores aliados do silêncio e do esquecimento. Escudados na interpretação rigorosa das leis, o Arquivo geral do Exército ou a Assembleia da República podem, ainda hoje, recusar o acesso a documentos essenciais, para compreender, em toda a sua dimensão, este período turbulento da nossa História. Mais: a lei dá aos protagonistas dessa história o direito de se tornarem donos desse mesmo silêncio e esquecimento, uma vez que “as respe[c]tivas autorizações para a libertação total de documentos só podem ser dadas pelos próprios ou pelos respe[c]tivos herdeiros”. Será, de todo, aceitável esta privatização da memória pública? A isto juntou-se outra dificuldade, a do homem e das suas circunstâncias. Diversos protagonistas do período aqui retratado recusaram testemunhar sobre o mesmo. Uns de forma diplomática. Outros ignorando olimpicamente sucessivas solicitações. Outros ainda tendo por certo de que não passaram anos suficientes para que possam relatar as suas vivências no conforto da democracia, sem correr o risco de convocar certos demónios de tempos idos. Estes últimos talvez tenham razão. Mas o caminho faz-se andando. Este livro deve, em primeiro lugar, a Josué da Silva (O Julgamento da Rede Bombista), João Paulo Guerra (Polícias e Ladrões) e Eduardo Dâmaso (A Invasão Spinolista) inspiração antiga para desbravar territórios novos de investigação jornalística sobre um período da História recente que permanece na penumbra e na obscuridade. Este livro é também o resultado de dezenas de corajosos e contrastados testemunhos. Trata-se de protagonistas que permitiram exclusivo acesso a preciosos arquivos pessoais e aceitaram falar pela primeira vez, ou quebrar silêncios de décadas, sobre episódios que viveram, moldaram as suas existências e o nosso percurso cole[c]tivo, para o bem e para o mal. Este livro resgata memórias de vítimas das primeiras horas, meses e anos da revolução, a maioria delas ignoradas ou reduzidas a uma nota fúnebre num pé de página da História. Vidas que nenhum Juízo Final, parafraseando Jorge de Sena, poderá devolver “aquele instante que não viveram, aquele obje[cto que não fruíram, aquele gesto de amor que fariam ‘amanhã’.”. Este livro mergulha nas origens, cumplicidades e desenlaces da rede bombista de extrema-direita, nas investigações e processos judiciais turvos sobre os quais ainda hoje se guardam judiciosos e prudentes silêncios, não vá estragar-se a moldura do regime. Este livro pretende, por fim, iluminar as trevas de uma época irrepetível [será?, esperemos que sim, que não volte a acontecer], obedecendo a um ponto de vista jornalístico e a um conceito moral de dever de memória que recusa as “estratégias de esquecimento” teorizadas por Paul Ricoeur. No conjunto dos 18 capítulos, este livro é, na esmagadora maioria, inédito e original, mas também recupera e a[c]tualiza relatos, memórias e episódios trazidos a público, em primeira instância, na revista Visão. O que vão ler é, pois, a outra história da Revolução. Uma narrativa que foi sendo obstruída, reciclada ou sujeita a demasiados esquecimentos, mas sobreviveu até aos nossos dias e se oferece agora enquanto escrutínio e contraste das versões canonizadas. A construção da democracia não foi apenas isto? É verdade. Mas foi também isto. A História, essa, será sempre o que fizermos dela.» Miguel Carvalho Porto, 11 de Dezembro de 2016 Lembro-me de ter ficado muito poucas vezes, ao longo de quase cinco décadas de vida, tão intrigada como fiquei naquela Primavera de 2017, aquando da apresentação deste livro em S. Pedro da Cova, antiga cidade mineira. Tinha saído a correr de um outro encontro de escritores em Famalicão, onde também estive pela última vez com uma querida amiga antes de ela falecer cerca de dois meses depois, para aterrar num vale, onde se narrava episódios absolutamente extraordinários acerca dos primeiros meses/ anos do PREC (que depois os meus queridos amigos, agora falecidos, Manuela Monteiro e Fausto Lima, me haviam confirmado também). Afinal, a Revolução não fora feita só de cravos e canções. Houve sangue, também. O livro dá a entender, logo no índice, de um conteúdo dramático a esconder-se por debaixo de um ambiente de festa e poesia, com títulos a remeter para poetas, músicos de intervenção, escritores e cineastas neo-realistas e ficção de espionagem sob a conjuntura histórica a envolver a Guerra Fria. Sim, esta última também mexe os cordelinhos com a História de Portugal. Não somos assim tão periféricos nem tão desinteressantes do jogo do xadrez geopolítico internacional, mas já lá vamos. Senão veja-se a epígrafe, retirada da opera magna de Giuseppe Tomasi di Lampedusa, O Leopardo: “É preciso que tudo mude, se quisermos que tudo fique como está”. Uma frase que remete para a circulação das elites, a sua renovação, mas garantindo que o sistema não mude demasiado. É um facto que mudou muita coisa no estilo de vida das classes menos favorecidas e um crescimento exponencial de uma classe média nos últimos cinquenta anos, mas estruturalmente o país não mudou tanto como seria de esperar. Não quero entrar demasiado na explicação, capítulo a capítulo, para não roubar aos leitores o prazer de ler o livro, mas posso desde já dizer que os primeiros capítulos são dedicados àqueles que morreram no próprio dia da Revolução de quem quase nunca se fala, histórias que Miguel Carvalho vem contar aqui, sob o formato de reportagem, muito ao estilo de Antonio Tabucchi. Histórias de gente que não fazia mal a ninguém, como a cotovia de Harper Lee (e de José Afonso, também), mas que morreram por um capricho da fatalidade e por se encontrarem no lugar errado à hora errada. São histórias trágicas, de pessoas comuns, iguais a qualquer um de nós, que poderiam ter escolhido andar na multidão naquele dia para ver o que se passava e assistir a tudo na crista dos acontecimentos. Testemunhas de um momento chave na história recente e que tiveram o azar de levar com uma rajada de metralhadora vinda de uma das janelas do quartel general da PIDE na Rua António Maria Cardoso, hoje transformado num condomínio de luxo. E a seguir à revolução seguem-se os movimentos contra-revolucionários, com algumas facções de esquerda a lançar ainda mais confusão na luta pelo poder, sendo que a quase totalidade desses movimentos tinha intenções muito pouco democráticas. Convém esclarecer que esses movimentos contra-revolucionários eram facções extremistas de direita e pretendiam reinstaurar o regime anterior - uma ditadura, com base num império colonial - e anular qualquer tentativa de mudança na pirâmide social. Convém, também, não esquuecer que, em Espanha, Franco ainda estava no poder e no Chile Pinochet seguia atentamente os movimentos da evolução política em Portugal com amigos-satélite no país. E, para complicar ainda mais as coisas, parte da esquerda ‘mainstream’ e certas organizações embriagadas por um horizonte de ‘poder popular’, ajudavam, segundo Miguel Carvalho, a ‘incendiar’ ainda mais o clima. No Norte de Portugal, a ala da Igreja mais radical, com o Cónego Melo à cabeça [que hoje tem uma estátua no centro de Braga] juntava-se aos movimentos contra-revolucionários, participando em acções violentas, inclusive atentados bombistas. A CIA, na pessoa do embaixador Carlucci, estava preocupada com uma possível sovietização do país. E, sobretudo a região a norte do Douro, estava toda em polvorosa, a braços com as arbitrariedades de grupos de “jagunços”, ao serviço de velhas elites, que beneficiavam do regime anterior, gente contratada para assediar a população e, particularmente, consciências potencialmente revolucionárias. É nesta época que políticos de grande carisma televisivo, oriundos quer do centro-esquerda quer do centro-direita, a que vulgarmente se chama de ‘arco da governação’, tentam chegar a uma conciliação e serenar os ânimos mas não conseguem evitar ter de fazer concessões a grupos que tinham muito poucas intenções democráticas, sobretudo com a direita reaccionária não democrática, a qual ficou durante grande parte das décadas que se seguiram, a operar fora do radar. A cidade do Porto, sobretudo na figura do Bispo do Porto, Dom António Ferreira Gomes foi fundamental na mediação e execução do processo de paz, ao persuadir, por exemplo, os sectores mais radicais da Igreja a não se envolver no conflito político e, principalmente, em movimentos bélicos ou atentados a alvos ditos ‘comunistas’. Durante mais de dois anos o país, ao contrário do que se apregoava, foi de facto muito pouco pacífico, com atentados terroristas à bomba e assassinatos cirúrgicos perpetrados por forças reaccionárias. Entretanto, partidos do centro, movem-se como já foi dito parar serenar os ânimos, mas há acordos que implicam uma paz ‘podre’, permitindo que crimes de sangue permaneçam até hoje impunes, “conseguindo-se a paz mas não a justiça”. Em suma, só para abrir o apetite, este é o retrato de uma época ‘quente’, de uma faceta do país que conhecemos ainda muito pouco e que alguns insistem em fazer de conta que não existiu, mas permitiu que muito “lixo” fosse varrido para debaixo do tapete. Esse lixo que entretanto foi apodrecendo e gerando novos fungos, bactérias e vírus, hoje recrudesce em extremismos de mentes ressabiadas e a contagiar descontentes como a ‘Peste’ de que falava Albert Camus. E fazendo correr o risco de implodir cinquenta anos de uma frágil democracia. O livro de Miguel Carvalho é produto de muitos anos de investigação bibliográfica (muito completa e variada), consulta de arquivos judiciais e inclui documentos que servem de testemunho e janela para um passado de grande turbulência e medo. Só para ficar um ‘cheirinho’ do conteúdo aqui vai o texto da contracapa: «Quem foram as primeiras vítimas mortais da democracia? Porque razão foram assassinados Padre Max, Rosinda Teixeira e Joaquim Ferreira Torres? Que “crime” cometeu o professor sequestrado na Madeira? Quem protegia e que segredos escondia a rede bombista de extrema-direita? Como enfrentou o cônsul dos EUA no Porto o PREC? O que relatam os diários do norueguês baleado no “Verão Quente” de 1975? Que organizações conspiraram contra a revolução? Como é que a Igreja mobilizou e abençoou a luta contra o “comunismo”? Como foram tratados todos os presos de direita em Caxias? O que sabia a PJ sobre o terrorismo político e tudo o que nunca chegou a julgamento? Com recurso a centenas de documentos [muitos deles aqui digitalizados], entrevistas e documentos inéditos, esta investigação jornalística traz à luz do dia histórias secretas ou esquecidas da contra[-]revolução. Quando Portugal ardeu e esteve à beira da guerra civil.» Este é um livro que me mostra que escrever é sobretudo um acto de extrema coragem e temeridade. Cláudia de Sousa Dias Londres, 27 de Abril de 2024

Friday, March 08, 2024

Portugal Amordaçado: depoimento sobre os anos do fascismo - Mário Soares (Arcádia)

Quando olhei pela primeira para este livro, o que me chamou a atenção, muito antes do título metaforicamente dramatizado, foi o subtítulo, por conter a palavra “depoimento”. Trata-se pois de um testemunho, de uma visão, de um olhar e um sentir do que foram os anos, metade de uma vida, quase, debaixo de um regime ditatorial. Mas antes de passar ao comentário do livro propriamente dito, penso que valerá a pena citar aqui, respectivamente, o prefácio, pelo punho do próprio Mário Soares, para esta primeira edição portuguesa de 10 de Junho de 1974 (a escolha da data também não foi por acaso) e, a seguir, o posfácio de Alfredo Barroso, na contracapa do livro: «O livro que agora se publica, pela primeira vez em edição integral Portuguesa, foi escrito durante o ano de 1971, quando me encontrava no exílio em Itália e em França, e editado em versão francesa encurtada pela Calmann-Levy, em Abril de 1972, sob o título de «Le Portugal Bailloné». Trata-se fundamentalmente de um depoimento despretensioso sobre os anos do fascismo e sobre a «luta indomada e indomável» dos democratas, tal como eu a senti e vivi a partir principalmente dos anos distantes de 1942 em que nela comecei a participar. Não se trata, pois, de um trabalho de história, nem de uma análise sociológica ou política aprofundada de uma situação que tão longamente persistiu em Portugal; trata-se antes, de um depoimento vivido, escrito a quente, no exílio, com a intenção de contribuir, embora modestamente, para a luta geral que então travavam contra a ditadura caetanista, todos os antifascistas anteriores ao 25 de Abril. O livro enferma assim de um certo condicionalismo temporal de que os eventuais leitores facilmente se darão conta. E, lido à luz da nossa visão de agora, poderá parecer, sob certos aspectos, insuficiente. Preferi, porém mantê-lo sem acrescentamentos nem actualizações, tal como o escrevi e vivi em 1971, quando a experiência do governo Caetano - recorde-se - ainda não era para alguns espíritos provadamente liberais uma experiência completamente falhada. Em certos pontos essenciais - como sobretudo nos capítulos «história de um crime» e «aventura colonial - surgiram, posteriormente, novos factos, importantes, que sem alterar a minha posição de base fundamental [,]a poderiam enriquecer e completar [,] se fossem desde já tomados em consideração. Trata-se, contudo, de um livro datado, que embora reduzido ao mais absoluto silêncio em Portugal teve aqui, como no estrangeiro, especialmente em França, uma relativa repercussão. Entendi, por isso, que o devia facultar ao conhecimento dos Portugueses - hoje que vivemos em liberdade - tal como o escrevi então e sem lhe introduzir correcções ou acrescentamento de última hora. O que se passou desde 1972 até à madrugada de Abril de 1974 em que as Forças Armadas restituíram Portugal aos portugueses - e que representa o lento apodrecimento de um regime condenado pela consciência nacional e internacional - a alvorada de esperança e de liberdade que estamos todos vivendo, desde então, constituem de certo novos e apaixonantes temas de reflexão política. Mas, por mais que pese ao meu editor, não representam novos capítulos possíveis do “Portugal Amordaçado”. Seriam antes objecto de um outro livro, bem diferente, que é cedo ainda para escrever, e a quem um dia (porque não?) meterei ombros, se as circunstâncias me proporcionarem o tempo para um tal trabalho. Mas não agora. Hoje, para todos nós, portugueses, o tempo não nos sobra para proceder a análises históricas, pois que todos temos que viver a história, alvoroçada e colectivamente. Lisboa, 10 de Junho de 1974» E, a seguir, o discurso apaixonado do posfácio de Alfredo Barroso a reforçar as palavras do autor: «Escrito durante a deportação a que o Governo de Salazar o condenara por tempo indeterminado, na Ilha de S. Tomé e durante os primeiros anos do exílio que lhe foi imposto pelo Governo de Marcello Caetano, este livro de Mário Soares, que só agora conhece a sua primeira edição em língua portuguesa, foi publicado pela primeira vez em França, em Abril de 1972. Testemunho lúcido e corajoso de uma experiência de luta constante e intransigente contra o regime fascista o livro de Mário Soares actuou como poderoso revelador junto de largos sectores da opinião pública estrangeira, profundamente alheada do drama português. Drama que bem pode consubstanciar-se nas admiráveis páginas do capítulo dedicado ao assassinato do General Humberto Delgado, cujas circunstâncias misteriosas Mário Soares conseguiu esclarecer quase por completo. Vigoroso libelo acusatório, antes do 25 de Abril, este livro de Mário Soares é agora, sobretudo, um documento histórico para compreender o passado e, por isso mesmo, um indispensável documento de reflexão contra os perigos que espreitam a liberdade e a democracia, que o mesmo é dizer contra todos aqueles que, encapotada ou abertamente, teimam ainda, desesperadamente, em impor o regresso a um passado que queremos definitivamente banido da terra portuguesa. Socialista de formação marxista, Mário Soares afirmou-se, ao longo de mais de trinta anos de luta anti-fascista, pela sua coragem e pela sua perseverança, como um dos principais porta-vozes das forças democráticas portuguesas. No Portugal livre em que vivemos desde o 25 de Abril, a sua biografia é já sobejamente conhecida, e nas páginas deste livro se traça, justamente, o itinerário político, do homem que, finalmente, pode hoje ser recebido, em manifestações de indescritível entusiasmo popular, pelas centenas de milhares de portugueses que acorrem aos comícios em que a palavra serena, rigorosa e lúcida do Secretário Geral do Partido-Socialista é o eco da liberdade e a esperança da democracia. Ministro dos Negócios Estrangeiros desde a constituição do Primeiro Governo Provisório da II República, Mário Soares tem sido também o melhor embaixador de Portugal no Mundo, outro hostil, que gora nos abriu as portas de par em par. Hoje, apenas cinco meses que são passados desde a libertação, o nome de Mário Soares está já, também - e para sempre o estará - indissoluvelmente ligado à história da descolonização portuguesa, que o mesmo é dizer à história da libertação de outros povos outrora oprimidos pelo mesmo regime que nos amordaçava.» Ao fazer esta recensão, não tenho em mente objectivos insanos como o de convencer quem tem convicções profundas de direita, mas sim de mostrar, a perspectiva do outro lado, para quem ainda estiver indeciso ou não souber o que é viver sob ditadura e sem possibilidade de exprimir um pensamento divergente, ou de fazer ouvir uma voz que não pertence ao poder ou, simplesmente, fazer passar livremente o pensamento crítico e até científico, apenas por discordar da voz dominante. Outra razão para o fazer é porque me parece que esta perspectiva não é tão massivamente difundida nas TV’s como é a oposta nos dias de hoje. A terceira razão é porque se trata de uma autobiografia que, não sendo história, como já foi dito, constitui fonte para fazer história, depois de confrontada com factos devidamente documentados por historiadores creditados. Além disso, o autor do livro é alguém que esteve na linha de frente, a combater na sombra, para a mudança do regime. Mário Soares não será o detentor da verdade, até porque nem ele próprio conseguiu iluminar todas os recantos obscuros das tiranias do regime anterior, como se viu no caso de Humberto Delgado, por exemplo, mas muito do que ele diz é corroborado por investigadores e historiadores creditados. Por isso acho relevante trazer hoje aqui, Mário Soares, à baila. Outros seguir-se-ão. No Domingo e nos dias que se seguem, se ainda me for permitido escrever. Assim, após a leitura das mais de 700 páginas do livro, acabado de escrever em Paris no mês de Fevereiro de 1972, mais do que um “depoimento inacabado”, como o classifica o autor (pg.728) é o dar conta da espuma dos dias o ‘zeitgeist’ da passagem de momentos-chave na história, começando há quase 140 anos atrás, desde 1891, altura do levantamento Republicano no Porto, a 31 de Janeiro, com a primeira tentativa de implantação da República em Portugal, ao mesmo tempo que estala uma grande crise financeira e colonial. Mário Soares, talvez pelo facto de o pai, João Soares, e vários membros da sua família terem estado na linha da frente dos acontecimentos do lado Republicano, movimentando-se no palco das acções políticas que estiveram na base da transição de um regime para o outro, dá-nos um retrato bastante detalhado e completo dos anos mais recuados da República e do declínio da Monarquia, nos primeiros capítulos do livro. De facto, até 1926, mesmo ainda dentro do período Republicano, houve períodos, ainda que breves, de ditadura (João Franco, Pimenta de Castro, Sidónio Pais) durante as quais se verificaram repressões violentas contra os Republicanos e Democratas, dos quais Mário Soares dá contas com especial acuidade. Percebe-se ainda que houve uma espécie de guerra civil, que prosseguiu, endémica, mesmo após a Implantação da República, e se desenvolvia até, de forma concomitante, com a Primeira Guerra Mundial, que gerou um clima de grande instabilidade económica e social no País. Uma guerra mundial (1914-1918) que foi sobretudo uma guerra de Impérios, ainda mais do que de ideologias e na qual Portugal não estava numa posição tão periférica quanto se possa pensar, já que os seus interesses coloniais em África interferiam tanto com os da Alemanha quanto com os da Inglaterra, aliando-se com esta mais por razões históricas e por tradição do que propriamente por motivos geopolíticos. Muitos destes episódios poderão ainda ser corroborados ou completados com a leitura de obras de historiadores como Rui Bebiano, Irene Pimentel, João Bernardo ou Fernando Rosas. Há depois o período passado na Faculdade de Letras (Filologia Românica) e a seguir a Faculdade de Direito onde se licenciou naquela que viria a ser a sua profissão nas décadas seguintes. Segue-se a história da formação das principais forças políticas, que constituem hoje os principais partidos políticos na AR, e que se começaram a consolidar a partir de meados do século XX (e algumas mesmo algumas décadas antes), sendo que destas houve também as que tiveram de optar por actuar na obscuridade, uma vez que toda e qualquer oposição política ao governo tinha limitações tão rígidas que toda e qualquer acção se revelava infrutífera e ineficaz, não havendo sequer forma de fazer chegar a mensagem à população, tão eficientes eram os mecanismos de censura. Isto é detalhadamente explicado já no capítulo IV, intitulado «Liberdade... “Suficiente”» (pp. 89-110). Depois, o posicionamento de Portugal relativo à segunda Guerra Mundial, que não foi tão neutro como se quer dar a entender, já que Salazar alinhou ideologicamente ao lado de Franco (apesar de algumas divergências e escaramuças que culminaram com a anexação do concelho de Olivença pelo Governo totalitário do Generalíssimo) Hitler e Mussollini, apesar da neutralidade aparente para evitar um eventual ataque Aliado. Os episódios que envolvem todos os acontecimentos protagonizados por Humberto Delgado são talvez aqueles que mais apaixonam Mário Soares enquanto narrador e autor do livro. Talvez pela proximidade temporal em relação ao tempo de escrita do depoimento, ou pela proximidade que o une à família de Delgado - Mário Soares foi advogado da família, levando a cabo as investigações das circunstâncias da morte do General, fazendo todos os esforços possíveis para recuperar o corpo (o que conseguiu) em Espanha e entregá-lo à família. O livro de Soares consegue ter o mérito de nos revelar (não tanto pela descrição directa e ‘contaminada’ pelas próprias preferências políticas e ideológicas e juízos de valor) características-chave destas duas personagens mutuamente antagónicas - Salazar e Delgado - mas, e aí reside o valor do livro, pela demonstração de atitudes indirectas, descrições de comportamentos e citações de discursos. Destes elementos que Soares deixa passar, quer no seu próprio discurso, quer nos discursos citados, ou mesmo atitudes demonstradas (externas ou observáveis) de Salazar e Delgado, percebemos ser este último um homem com muito boas intenções, mas impulsivo a ponto de, por vezes, as suas acções se tornarem imprevisíveis. Isto poderia causar desconforto, quer para o seu oponente no governo, Salazar, claro, quer para alguns dos seus aliados, ligados à URSS. Salazar aproveitou muito bem esta vulnerabilidade de Delgado, como Mário Soares demonstra, ao citar na íntegra a carta que o ditador fez difundir, tentando deitar as culpas para a morte do seu rival, nos próprios opositores. O Ditador é absolutamente convincente. A única coisa que o trai, ou melhor, que trai as suas palavras, são as suas acções, ao tentar bloquear, por todos os meios, toda e qualquer tentativa que leve ao prosseguimento de investigações que tornem possível a identificação, sem margem para dúvidas, do assassino ou dos assassinos de Delgados. Assim são as ditaduras. Neste tipo de regime, os opositores políticos não são descredibilizados. São mortos. De preferência, de forma a parecer um acidente, um suicídio, ou qualquer outra forma de desviar a culpa para a vítima ou os seus aliados. Os últimos capítulos são já o regime em acentuado declínio, após a morte de Salazar e a decepcionante transição para a democracia que, supostamente, seria operada pelo seu sucessor. O livro termina coma exortação à revolução e o apelo à mudança, à saída de um regime, ao qual muitos hoje, desejam que se reinstaure. O futuro ninguém sabe como será. O passado, fica registado em livros como este, que vale sempre a pena revisitar, como num filme. Ou num telescópio que nos mostra como eram as estrelas há biliões de anos atrás. Londres, 8 de Março de 2024 Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, September 13, 2023

OS ANJOS NÃO MORREM E TU MORRESTE DUAS VEZES de Marta Duque Vaz Kalandraka | Faktoria | Colecção Confluências

Em Os Anjos não Morrem e tu Morreste duas Vezes, de Marta Duque Vaz, encontramos em pleno o seu talento e mestria na escrita. Pode-se dizer, por isso, que este livro é um marco na carreira da escritora que vem das Ciências Sociais e que não se limita a falar de temas actuais, mas fá-lo com habilidade analítica, de sabor agustiniano, em algumas observações mordazes, e ironia quanto baste, além de o fazer com grande capacidade de expressão poética. Trata-se de um livro composto por doze histórias protagonizadas por mulheres de todas as idades que se deparam com situações-chave que afectam o seu mundo, marcando o seu percurso de vida e a sua forma de se relacionar com o Outro (“Laura e os Dias”, por exemplo), como se verá mais adiante. Este impacto dá-se em várias esferas - familiar, profissional, amorosa, intelectual, espiritual, artística - reflectindo-se em situações do quotidiano que servem de pano de fundo à criação literária e à arte de construir o conto como ficção curta, muito em paralelo com a forma de se construir a curta metragem cinematográfica. Numa estética que vai buscar inspiração ao Modernismo, Marta Duque Vaz recorre, para terminar quase todas as histórias, ao momento de suspensão da acção (como em “Sinfonia para um vestido verde” ou “A arte de ser a última”) deixando-nos no limiar dos acontecimentos, produzindo finais abertos de forma levar o leitor a conjecturar, ele próprio, o desenlace, tal como nas histórias de Katherine Mansfield ou mesmo de Clarice Lispector. Todas estas histórias de mulheres - que dizem respeito a todos os seres humanos - têm uma particularidade que causa sempre alguma perturbação. Perturbação que se antevê na escolha das epígrafes que antecedem o desfile carnavalesco das personae criadas pela autora, a incarnar os diversos papéis sociais e conflitos vividos pelas mulheres que fazem parte da sociedade hodierna. Passemos então às histórias, uma por uma, neste link: https://medium.com/@claudiadesousadias/marta-duque-vaz-a-confirma%C3%A7%C3%A3o-do-talento-na-arte-de-escrever-6cf54e552410.

Wednesday, December 14, 2022

O Lado Esquerdo (monólogo) de Marta Duque Vaz (Editora Assarapanto)


Fotografia de Carla Sousa para a capa de O Lado Esquerdo

Este livro foi lançado em Maio deste ano de 2022, já na cauda da pandemia do século XXI, aquando da estreia da peça de teatro no Coliseu do Porto com o mesmo título, em adaptação do texto de Marta Duque Vaz ao palco. A estreia nacional da peça tinha sido já no dia 19 de Novembro de 2021, no Teatro Municipal Amélia Rey Colaço, em Algés. O guião e encenação estiveram a cargo de Daniel de Freitas, e a interpretação - belíssima - da actriz Sonja Valentina que nos presenteia com uma ‘Isabel’ com algumas variações subtis face à personagem com o mesmo nome de Marta Duque Vaz. Mas isso acaba por não ter importância nenhuma, uma vez que esta Isabel é una e múltipla, desdobrando-se em muitas outras mulheres. Mas já lá vamos.

Para começar, tracemos o retrato da escritora, da qual já falámos por duas vezes, nos tempos remotos deste blogue (2005 e 2015). Marta Duque Vaz é jornalista de profissão desde os dezoito anos e escritora desde os seus verdíssimos anos de adolescente. Publicou, no final do liceu, um livro de poesia, lançado na fundação Cupertino de Miranda em Vila Nova de Famalicão e, em 2015, o livro infanto-juvenil A Senhora Clap e o Mundo na Palma das Mãos o qual foi também adaptado ao teatro no Brasil com o título O Tratado da Senhora Clap e trazida depois a peça a Portugal pela Companhia em tournée.

Pelo meio, Marta Duque Vaz foi escrevendo inúmeros contos, ainda inéditos, narrativas, ensaios e crónicas, dispersos quer pela imprensa escrita, incluindo revistas literárias (p.e. Revista Egoísta, coordenada por Patrícia Reis) quer pela blogosfera, entre outras produções narrativas, ficcionais e não só, em preparação.

A peça O Lado Esquerdo nasce do cruzamento de duas vozes monologantes, Isabel e António, que são colegas de trabalho. Na peça de teatro, temos uma voz em off a representar António, que se encontra a escrever um e-mail a Isabel. Um e-mail...que não é de trabalho. A voz de António ouvida em palco é, pois, a de um autor que se encontra a ler silenciosamente o texto que escreve.

Isabel, por seu turno, responde-lhe, em alta voz, num momento diferente, muito posterior à escrita da carta de amor/e-mail de António. Isabel, com o texto impresso, lê em voz alta e vai respondendo, comentando, ao texto de António. O efeito é como se fosse uma conversa entre os dois em que cada qual fala para um microfone que esteja a gravar o pseudo-diálogo. António escreve uma confissão, Isabel responde-lhe como se este a ouvisse.

A peça tinha sido estreada em Lisboa quase no final de 2021, onde teve três récitas, para depois ser novamente levada a cena com o lançamento do livro em 21 de Maio do ano seguinte no Coliseu do Porto, mas desta vez acompanhada pelo lançamento do livro. Ao sair da sala de espectáculos, dei por mim emocionada com a interpretação sensual de Sonja Valentina e o solilóquio de uma mulher madura a qual,  à medida que lê a declaração de amor-admiração que lhe é dirigida, vai reflectindo sobre as relações, os sonhos, a vida de uma mulher que já completou quatro décadas de vida e cujos sonhos e aspirações dariam para alimentar quarenta décadas - disse bem, décadas, não anos - mais.





Sónja Valentina, em palco

Não consigo deixar, porém de reparar em algumas diferenças de interpretação ou divergências em relação ao texto de Marta Duque Vaz. Sonja Valentina, dirigida por Daniel de  Freitas dotou a voz de Isabel, a protagonista, de uma tonalidade amarga, desiludida, que se exprime por vezes num riso levemente sarcástico, a denunciar uma certa desesperança, com o amor, com a vida e o seu percurso mais ou menos tortuoso.

Na verdade, ao assistir à peça, era frequente lembrar-me do contraste da expressão vocal da actriz e a da autora, a quem já ouvira ler o texto, em primeira mão, pelo menos em parte. A narradora de Marta Duque Vaz é uma mulher lúcida, de inteligência acutilante e humor desconcertante que, regra geral, desemboca em conclusões que deixam o leitor siderado de surpresa. Mas na Isabel de Sonja Valentina nota-se uma certa tonalidade mais escura, depressiva, nihilista que não faz parte do tom narrativo de Marta Duque Vaz. No entanto, a aparente distorção da personalidade na figura criada em palco em relação à do texto original, a personagem Isabel, acaba por não ser completamente descabida, uma vez que a Isabel de Marta Duque Vaz é alguém que se desdobra em múltiplas mulheres, podendo assumir facetas de humor que não estão contidas nos momentos descritos no texto. Isabel é pois uma mulher que representa as múltiplas faces da mulher universal. Como narradora e personagem principal, Isabel é alguém que tem consciência desse desdobramento, dessa ocupação do corpo pelo espírito das outras mulheres, mas o contrário - as outras terem acesso à consciência de Isabel - não acontece, o que faz dela um narradora omnisciente.

Ora, na peça, o espectador não consegue aperceber-se desse desdobramento, que resultaria numa polifonia que enriqueceria bastante mais a peça, mas seria de uma exigência extrema em termos performativos, obrigando à libertação dos múltiplos ‘eus’ femininos que habitam o corpo de Isabel e formam o todo de que é composta a mesma personagem. Em matéria de plurivocidade este texto de Marta Duque Vaz está ao nível de ‘Kew Gardens’ ou de ‘The Fascination of the Pool’, ambos de Virginia Woolf. E, por isso mesmo, estou convencida de que esta será talvez a maior mutilação, operada ao texto original, apesar de o efeito ser agradável ao espectador, cativado pelas palavras da autora na boca da actriz, mas em que são retiradas, em grande parte, a riqueza e a complexidade ao texto de Marta Duque Vaz.

Por outro lado, o texto que representa a voz de António, sendo ele baseado e adaptado de um conto ainda inédito da autora, mas que já lhe havia garantido um prémio numa das edições de ‘O Escritor Famoso’, em 2005, concurso patrocinado pela extinta livraria O Navio dos Espelhos, em Aveiro. A adaptação ao palco mostra um homem que se encanta pela figura do corpo da colega de trabalho da qual, sentado à sua secretária, só consegue observar o seu lado esquerdo. O olhar de António atravessa assim a janela do escritório para fora, em direcção à janela do prédio ou do bloco de escritórios em frente ao seu, e onde se encontra Isabel. E isso também não foi completamente perceptível na peça a que assistimos, na qual a protagonista já se encontra em casa, e se vai despindo, executando os gestos e rituais de uma mulher auto-suficiente, que vive sozinha, in a flat of her own, etc.

O final, na peça, é também completamente divergente do dos textos originais. Mas mesmo assim vale a pena assistir à mesma, que funde, de forma harmoniosa, os dois belos textos da autora.

Rosa Alice Branco, no prefácio para esta edição, a qual também apresentou no Coliseu, faz ver que:

«António explorou a fala do corpo de Isabel a partir da visibilidade possível que indicia no lado esquerdo da mulher e desencadeou uma reacção nuclear de todas as mulheres tatuadas em Isabel. O texto é infinito, na medida em que era possível continuar a escrever indefinidamente o que Isabel pensa de si - dessas outras de si - da sua vida, das suas crenças, dos seus delírios. O que outros julgam saber de si. Sobretudo o que se ignora e se multiplica pelas páginas em hipotéticas celebrações da vida e da ausência: da poesia, pela voz das suas poetas, que lhe tecem e destecem os seus caminhos que se abrem nas entranhas».

Pedro Trindade teve a ingrata tarefa de comentar a sequência fotográfica de Carla Sousa antes de ver a peça e sem ter tido acesso ao texto de Marta Duque Vaz, mas conseguiu capturar a essência das fotos: a expressividade dos gestos de Sonja Valentina que Carla de Sousa consegui congelar no tempo e a complementaridade dos adereços que fazem parte do cenário. De facto cada objecto tinha a sua simbologia e o seu lugar na peça. Este é o lado brilhante de Daniel de Freitas enquanto encenador, onde nada foi deixado ao acaso.


O livro é um belo objecto de colecção, com capa de Francisco Carvalho Diniz, que já havia feito também a capa do primeiro livro de Marta Duque Vaz, Aclive (poesia). O texto de O Lado Esquerdo é ilustrado com fotografias que representam alguns dos momentos mais expressivos da peça, com Sonja Valentina a dar corpo à voz de Isabel, captada pela objectiva da fotógrafa Carla de Sousa, natural de Luanda, Angola. Pode mesmo dizer-se que Carla de Sousa captou os melhores momentos da performance de Sonja com uma extraordinária beleza plástica.

O texto encontra-se estruturalmente dividido em nove secções, cada uma delas um desdobramento da personalidade de Isabel. No entanto, é impossível fazer corresponder a cada secção ou capítulo, o nome de cada uma das mulheres que aparecem no texto. A alguns destes podem mesmo corresponder duas ou três ocupantes do corpo de Isabel, a representar diferentes arquétipos corporizados. Num único corpo físico lutam assim estereótipos femininos diversos, por vezes até antagónicos, a representar relações, memórias, toda a casta de emoções e afectos. À medida que avançamos no texto percebemos que são os momentos de solidão que permitem a Isabel alimentar estas mulheres: a mesma solidão que facilita a construção do próprio discurso, resultando numa profusão de vozes que se cruzam e dialogam à vez, com o seu público real - os ouvintes - , e fictício - António, autor do e-mail que desencadeou, no momento em que Isabel vê o texto, já em casa, o coro de vozes que, dentro de si, se manifesta.

Um texto monologal, desconcertante e belo, que fala essencialmente de amor e solidão, por uma protagonista que surge sempre pronta a reiniciar a vida. sem dar nunca lugar à descrença na felicidade.




Vila Nova de Famalicão 14 de Dezembro de 2022,



Cláudia de Sousa Dias


Friday, August 26, 2022

"Histórias do Diabo" (Contos) de Orlando de Albuquerque (Capricórnio)

 


















Imagem: Edições Loyola




O autor deste livro, hoje esgotado e só encontrado em alfarrabistas ou em espólios de bibliotecas, foi um médico angolano, nascido em Moçambique, casado com a poetisa Alda Lara. Viveu grande parte da sua vida profissional no Minho, na cidade de Braga onde exerceu clínica. A sua outra faceta, a de escritor acompanhou-o, no entanto, como uma vida paralela. Começou a publicar em 1947, altura em que viu o seu primeiro livro de poesia, Batuque Negro, censurado e proibido de circular pela PIDE.


A produção literária de Orlando de Albuquerque estende-se no entanto por vários géneros, desde a poesia ao romance, passando pela crónica e o ensaio. Sem esquecer, também, a actividade como dramaturgo e contista. Estas duas encontram-se estreitamente ligadas a julgar pelo minúsculo volume de contos de que hoje aqui tratamos e cuja coloquialidade, posta na voz do narrador, sugere uma riqueza de modalização que torna a obra facilmente adaptável ao teatro, na forma de monólogo.


Os contos deste volume são na verdade pequenos monólogos, relatos narrados por uma voz popular (ou populista?), altamente persuasiva, mas revestida de uma pungente ingenuidade, susceptível a superstições, crente (?) e, pelo menos na forma do discurso, reverente ao sobrenatural. O discurso é fluido e ininterrupto, errático, algo caótico, como é típico das narrativas de tradição oral, marcada por inúmeros meandros e desvios face à trama principal, com com narrativas secundárias encaixadas. Trata-se por isso de um discurso polifónico, multi-vocal, embora vertido pela fala de um único locutor. Este é alguém altamente persuasivo, convencido da posse daquilo que apresenta como sendo uma única e absoluta verdade. Os factos que vai apresentando, contudo, desmentem-no, tornando-o numa personagem cómica, como é o caso da primeira história: “A verdadeira história do padre que agarrou o diabo pelos cornos quando este lhe andava a roubar as couves”.


As histórias têm sempre como protagonista o mesmo sacerdote: o padre Apolinário, sacerdote da velha guarda, que mantém a sua ascendência sobre os fiéis através da inculcação do medo do demónio, praticando e predicando uma fervorosa fé - e cobrando, claro está, dinheiro pelo serviço e arrecadando prestígio e poder através da submissão - à conta de exorcismos, rezas e bênçãos de que o seu público, profundamente crente e sugestionável, é súbdito e devedor.



Este trabalho de Orlando de Albuquerque torna-se, ao mesmo tempo, uma sátira e um retrato das crenças, dos medos mais profundos no seio de um país onde há nem meio século a esta parte grassava o analfabetismo e o medo ou desconfiança de tudo o que fosse conhecimento científico ou intelectual, principalmente nas camadas mais humildes e menos letradas do Portugal do fim da ditadura. O livro foi publicado primeiramente em 1979 e as histórias escritas alguns anos antes. Todos os contos incluídos neste volume apresentam, por isso, um padre Apolinário como líder espiritual sem rival na povoação da freguesia de Alívio (nome fictício), mas estas histórias mas são contadas por uma mesma voz que cita uma multiplicidade de outras vozes (de forma directa, indirecta e através de discurso indirecto livre), quase todas com o mesmo grau de credulidade.


A nota inicial do autor confirma estas Histórias do Diabo tratarem-se de uma recolha de narrativas de tradição oral, recompilada e articulada sob a forma de histórias interligadas - o Padre Apolinário surge como principal divulgador da crença no sobrenatural e na existência do diabo pela boca de um narrador, que lhe é próximo - relatando fenómenos supostamente (ou nem tanto) paranormais, recheados de condimentos discursivos, arranjados de forma a captarem facilmente a atenção do ouvinte. Na nota de agradecimentos, o autor dá a entender serem todas essas histórias provenientes da mesma fonte: um narrador que lhas haveria contado, em primeira mão, ou não, estas lendas com algo de gótico ou fantástico - o Ti Joaquim das Fontaínhas.

“São devidos pelo Autor ao Ti Joaquim das Fontainhas, verdadeiro narrador destas histórias, exemplo de paciência para a minha muito ignorante curiosidade que a sua tradicional sabedoria, bebida na cepa dos melhores valores avoengos esclareceu e informou”.


E por fim, ainda em nota do Autor, em forma de dedicatória ao Padre Gonzalez, surgindo como introdução à obra onde dá a entender a sua real forma de pensar, demarcando-se do narrador das suas histórias, apresentando uma postura bastante mais céptica embora não frontalmente iconoclasta:

“Posto isto, estou como aquele seu patrício, que dizia «yo no creo en brujas, pero que las hay las hay...». Que o diga o Padre Apolinário , que um dia até agarrou o pé-de-cabra pelos cornos. (...) Coisas do diabo, não haja dúvidas...”.

Na explicação da obra, à laia de provocação ou simplesmente travessuras do Autor explicadas jocosamente na dedicatória ao padre Gonzalez Quevedo, o Autor esclarece, num discurso híbrido, onde deixa a dúvida se o pensamento reproduzido é o dele próprio ou do narrador, deixando entrever o real teor e intenção da obra:

“Este livro trata das Histórias do Diabo, que ora aqui se contam e que por verdadeiras se devem ter e delas deve o leitor, atento e consciencioso, bom exemplo e proveito tirar, para que nelas encontre sólida armadura e defesa, que o livrem das solicitações do demónio e demais tentações que existem neste mundo para desgraçar as almas e conduzi-las pelos ínvios caminhos da perdição”. Este pois é o teor das histórias que foram inspiradas pelo Ti Joaquim das Fontaínhas, mas a que o autor se apressa a esclarecer acerca do seu próprio posicionamento, colocado num limiar da descrença, em dedicatória a um pragmático Padre Quevedo.

Os títulos das histórias, por si só, fazem as delícias dos mais exigentes satiristas:


  • A verdadeira história do padre que agarrou o diabo pelos cornos, quando este lhe andava na horta a roubar as couves.
  • De como a Rita do Regedor esteve endemoninhada e Padre Apolinário a exorcizou e depois de casada nunca mais foi presa do malvado demónio.
  • De como o avô do narrador foi dar com uma feiticeira a cavalo num tonel de vinho e a chupá-lo por uma cana e acabou por lhe perdoar.
  • De como o Diabo se disfarçou numa donzela vestida de branco para perder a alma de um pecador e depois se esqueceu das cuecas, que afinal aram vermelhas.
  • Em que se narra ao leitor o mistério das vozes na noite e de como este mistério foi finalmente esclarecido para socego (sic) e descanso das boas almas, que estiveram em grande risco e à beira da perdição.
  • Do desaparecimento de algumas celouras (sic) [ceroulas] e outras tropelias que o diabo praticou em casa do Padre Apolinário e como depois se veio a pôr tudo em pratos limpos, com grande escândula de toda a gente.
  • Em que se conta a incrível história que aconteceu ao Padre Apolinário em que este obrigou o diabo a ajudá-lo à missa.
  • Onde se conta como a Lucinda reconquistou o amor do Joaquim Piloto e como ela afinal era um coração de oiro e tudo terminou em bem.
  • Aqui se descobre a origem da estranha guerra de Padre Apolinário com o demónio e a safadeza que o Cornudo lhe fez, tentando arrastá-lo para a perdição, na figura de uma rapariga, que por acaso até era a sua governanta...

(Alerta de spoiler):

A esmagadora maioria dos contos aqui reunidos apresenta a descrição do fenómeno sobrenatural pela voz de alguém que é ou que se diz crente e que tenta persuadir a audiência - leitores ou ouvintes - da veracidade das mesmas e da existência do Diabo e das suas perversas artimanhas. No entanto, a própria narração dos factos coloca essa “verdade” em causa, como é o caso do desaparecimento dos produtos hortícolas do do quintal do Padre, como sendo obra de um bovino e que o narrador insiste ser a incarnação do próprio Satã - o tal misterioso “vulto de chifres”. Ou o autor da voz misteriosa, que se ouvia à noite em casa do Padre, e cujas ordens e directivas beneficiavam sempre o mesmo muito terreno destinatário. Ou o assalto à casa do sacerdote por outro diabo muito carnal, que acaba a ajudá-lo à missa, à laia de penitência. Uma suposta bruxa que rouba vinho, interfere com os seres do outro mundo para que aquele que a pode denunciar nunca tenha “azares” na vida. A gravidade da condição feminina é entrevista na situação da jovem atormentada por um demónio, silenciada pelo padre e pelo medo e que depois “sossega” [será?] ao casar e sair da alçada de um parente próximo que a violava. Um silenciamento operado pelo poder patriarcal, operado logo no segundo conto, o mais dramático de toda a colectânea.

Mas o mais interessante da obra é ainda um ponto de vista feminino que é mediado pelo narrador traduzido numa situação cómica desmascarada por uma mulher, que aponta a contradição entre os aspecto da roupa exterior visível e da roupa interior para denunciar a carnalidade do ser supostamente do outro mundo.

A obra de Albuquerque poderá apenas ser igualada pela de Gil Vicente na sátira e denúncia de falsos milagres, pelo que é uma pena que se encontre fora de circulação, soterrada em armários bolorentos ou armazéns inundados pela humidade e teias de aranha.




Vila Nova de Famalicão, Maio de 2022

Cláudia de Sousa Dias

Wednesday, July 27, 2022

Constantino, Guardador de Vacas e de Sonhos de Alves Redol (Europa-América, Col. Livros de Bolso)








 Alves Redol é hoje um autor quase esquecido do grande público, afadigado com os escritores contemporâneos, presentes e ubíquos em incontáveis eventos públicos, agendados por poderosas, eficazes e eficientes estratégias de marketing das editoras com volume de negócios que o permitam. De fora ficarão pois, autores que, embora marcantes numa dada época da história da literatura em Portugal, já não têm como competir com a presença de autores vivos. Não deixa de ser, no entanto, interessante e enriquecedor revisitá-los, pelo que este weblog, ainda que anquilosado e estado catatónico, se propõe a fazê-lo sempre que houver oportunidade e uma janela de tempo para tal. O interesse de um autor como Alves Redol adquire assim, para os dias de hoje, a importância de recuperação e preservação da memória de uma época passada, pelo traçar do retrato de uma sociedade e de um estilo de vida que cada vez menos é compatível com o desenvolvimento das sociedades urbanas, pressão da modernização das sociedades rurais, ou a forma radicalmente diferente (e ainda bem) de encarar a infância e o papel dos géneros na sociedade.

1. Dados Biográficos e Contextualização da Obra


O autor desta pequena história de natureza híbrida (narrativa-novela-crónica) é natural de Vila Franca de Xira, nascido um ano depois da Implantação da República em Portugal. Acabou, no entanto, por falecer  em Lisboa, cinco anos antes do fim da ditadura do Estado-Novo. É considerado uma das figuras-chave do neo-realismo português.

António Alves Redol cresce e passa a juventude no Ribatejo, onde revela desde muito cedo a inclinação para as letras e para a escrita, contrariando os desejos do pai, que ambicionava que ele se tornasse comerciante tendo, para isso, de frequentar o Curso Comercial no Colégio Arriaga.

Paralelamente, começa a escrever para a imprensa com apenas catorze anos e continuará a fazê-lo mesmo enquanto exerce a profissão que o pai havia idealizado para si: primeiro, numa mercearia, depois numa loja de tecidos. No final da adolescência, faz uma incursão em Angola, regressando pouco depois, por não gostar das condições de trabalho a que eram sujeitos os operários nesse país, então ainda colónia portuguesa. De volta a Portugal, já adulto, passará a trabalhar na indústria ligada ao ramo automóvel, enquanto dá explicações de Língua Portuguesa. Manifesta, também, desde cedo, uma sensibilidade especial para se aperceber da precariedade das condições laborais dos trabalhadores rurais em ambos os continentes, algo que se irá reflectir na sua obra e inscrever-se, invariavelmente, no discurso da entidade narrativa e nas atitudes das personagens. A obra de que hoje aqui falamos é, apesar da acção centralizada e focalizada na infância, paradigmática na representação destas características na sociedade ribatejana durante o regime de Salazar-Caetano.

Este é o cenário histórico que serviu sempre de base ao teor da literatura que a escreveu, inserida no movimento neo-realista.
Por outro lado, um pouco por toda a Europa, eclodiam várias décadas antes da escrita de Constantino (sobretudo no período de interregno entre as duas grandes guerras, nas décadas de 1920 e 1930), movimentos de reacção às lutas pelos direitos laborais e que acabaram por desembocar em regimes totalitários, tais como o fascismo de Mussolini, em Itália, o estalinismo na Rússia (sobretudo com a violenta repressão operada na Ucrânia), a lenta e inexorável ascensão do movimento nazi, durante o período da república de Weimar na Alemanha e claro, os movimentos reaccionários que levaram à ditadura militar em Portugal.

Em geral, toda a obra de Alves Redol, incidem no observação atenta da paisagem social Ribatejana, em narrativa de teor antropológico, sobretudo os romances e novelas como a de que hoje aqui tratamos - apesar deste livro aparecer nalguns sítios da web classificado como conto, trata-se muito mais de uma novela, não só pela duração da narrativa (demasiado longa para ser classificada de conto, demasiado curta para ser um romance), mas também pelo facto de as personagens serem todas elas planas, ou seja esquematizadas em tipos sociais, mantendo as suas características psicológicas ao longo da trama, sem desenvolvimento explícito ou modificação duradoura do seu carácter. A própria narrativa é também ela apresentada de forma estática - um retrato do mundo rural Ribatejano de então. Constantino, o Guardador de Vacas e de Sonhos encontra-se, assim, inserido na temática neo-realista que trata de problemas de cariz social e laboral, ligando-se também a questões Políticas, económicas e culturais. Por esta razão não se coíbe a retratar realidades incómodas, muito presente na época, de uma forma que hoje quase poderíamos considerar chocante, como a fome e de como esta afecta cada membro de uma família ou de uma comunidade, bem como o desemprego e, consequentemente, a pobreza. Mas não só. Constantino, o Guardador de Vacas e de Sonhos trata também a questão do exercício da violência pelo mais forte face ao mais fraco, violência essa que está sempre camuflada nas entrelinhas, aparecendo quase como que ‘naturalizada’ e socialmente aceite por conformismo, de forma a iludir a censura e impedir  a apreensão e proibição da circulação do livro e/ou a repressão do autor pelo aparelho político do estado.


2. O Ponto de Vista do Narrador (PDV) na obra

O ponto de vista do narrador em Constantino, o Guardador de Vacas e de Sonhos e a empatia do mesmo narrador enquanto tal  - não confundir com o autor da obra embora na maior parte das vezes o PDV de ambos coincida - aparecem quase sempre alinhados à figura do protagonista, Constantino ,  uma criança que frequenta o então chamado ensino primário mas que é obrigado pelos adultos da casa a trabalhar no campo a guardar vacas. Os adultos tratam-no com rispidez e ele paga-lhes na mesma moeda incluindo à mãe, à avó, à professora que, na escola, bate aos alunos pobres - aos filhos dos notáveis da população e das classes mais favorecidas o tratamento é diferente - quando não acertam nas respostas nem progridem na aprendizagem da leitura ou da matemática. E isto leva-nos aos dois aspectos da novela que vamos analisar a seguir.

3.  A visão e o tratamento da infância durante o Estado Novo

Este pequeno livrinho de pouco mais de cem páginas expressa aquilo que a escritora Matilde Rosa Araújo apontava como sendo uma obra que focalizava essencialmente os direitos da criança. Daí o facto de o escritor construir um ethos das principais personagens femininas (que supostamente e segundo a Constituição de 1933 teriam ‘naturalmente’ a função de educar, mas que acabam por não ser só não só as personagens femininas a fazê-lo, como veremos mais adiante) responsáveis pela educação de Constantino, Este surge-nos, à primeira vista, como um menino muito pouco simpático, devido à firma desabrida, ríspida e modos bruscos que demonstra, mas que são o reflexo com que os adultos tratam o jovem. Desde a professora que desfere desvairadas reguadas como método pedagógico, à avó com o se hábito de resmonear por entre dentes (pag.69: 1975), descontente e arreliada pelo facto de o neto querer brincar com os outros amigos ao invés de trabalhar no campo, um resmungar que aparece onomatopeizado pela repetição frequente da expressão ‘ferrum-fum-fum’ (itálicos meus).

« - Só queres andar no galhó, meu quadrilheiro! E o teu pai a matar-se no trabalho por via de ti!Ainda o sol estava na barriga do outro mundo, já ele ia de enxada por aí fora. E tu pensas que             vais andar toda a vida na moina?!...Estás bem enganado!

Era de ensandecer o homem mais parrana, quanto mais um rapaz assomadiço que sabia as horas de tratar do gado e não virava a cara às canseiras da lida. Conhecia as obrigações, não precisava que as mulheres andassem atrás dele, ferrum-fum-fum, ferrum-fum-fum, a mãe de um               lado, a avó do outro, numa picaria de aguilhão em cima de boi ralaço.» [69-1975].

O pensamento da avó, vertido em discurso directo não deixa dúvidas quanto à visão dominante da sociedade (que aqui também inclui os homens) sobretudo no tocante ao papel da infância, à qual são imputadas responsabilidades quase idênticas às do adulto, ainda antes de acabar o ensino primário [equivalente até ao actual quarto ano de escolaridade]. Já o discurso indirecto é mais difícil de ser imputado ao narrador, aparecendo muitas vezes como uma forma híbrida de discurso em que é o narrador produz a fala, isto é exerce o papel de locutor, vertendo a voz ou expressão o fluxo de consciência da personagem, uma característica muito frequente nos escritores da corrente estético-literária do Modernismo, que inclui o movimento Neo-realista.

Na primeira parte da novela - ‘Um cuco Rambóia’ - o ponto de vista da avó em relação à infância é expresso no capítulo-crónica “Não ir à caça e apanhar uma raposa”, sendo que a expressão ‘apanhar raposa’ significava na gíria de então, reprovar ou não transitar de ano, que é o que acontece a Constantino, ao ficar retido no terceiro ano.

        «A Ti Elvira, incapaz de decifrar uma letra do tamanho de uma roda de carro de bois, concede aos         netos a façanha de saberem ler nos livros certos nomes estranhos de terras e de gente, que ficam            para além das fronteiras do seu pequeno mundo. Mas isso basta. A experiência segreda-lhe que            há muito doutor aparentado a jerico de cigano - na cabeça não lhe faltam cores, berloques e                  guizos, mas só com grão de pimenta metidos no “sim-senhor” se mostram vivazes e ligeiros.»                 [p.53].

Assim se percebe que a Ti Elvira - como é chamada e conhecida na comunidade a avó de Constantino - dá mais importância ao saber empírico, retirado do contacto com a natureza, mas que não ultrapassa o mundo que conhece. Da mesma forma, considera quase que sagrados os costumes e  as tradições em que foi educada, não desejando a mudança, porque tudo lhe parece estar bem, ou segundo a ordem ‘natural’ das coisas. A experiência transmitida pelos antepassados basta-lhe porque não sai da aldeia, nem contacta com outras realidades. Pratica uma economia doméstica e detém uma autoridade absoluta dentro do espaço doméstico, sobretudo com as crianças. Assim sendo, é também ‘natural’ que estas se ressintam com a sua dureza:

«Os netos só se esquentam com ela se lhes dá para gracejar à sua conta, ou se lhes grita o nome quando se sentem felizes na brincadeira e a Ti Elvira precisa dalgum recado. O Constantino, por exemplo, andou com cara de ferro-velho durante quinze dias quando voltou da            escola no dia de passagem para a 4ª classe e a avó, lá porque ele ficou mal, se pôs à hora do jantar         a oferecer à nora uma pele de raposa para fazer gola de bicho.» [p.55:1975]. 


Mas às humilhações da avó junta-se a ameaça velada do pai, sob a forma de um não muito discreto aviso-ultimatum:

«- Se perdes outro ano, acabou-se o ofício...Meto-te no campo a puxar a raiz do sol cá para baixo. Vais saber o custo da galé...» [P.57:1975].

A frase do pai, autoridade máxima da casa, dentro e fora desta, cai-lhe mais fundo do que a das mulheres que se submetem às directivas e ao domínio do “chefe de família”. Sabe também que, acumulando em casa o papel de juiz e executor, a palavra do pai tem efeito para toda a vida. Note-se no excerto seguinte o sentido duplo da palavra ‘sentença’, a significar ‘frase’ mas também uma espécie de condenação com pena suspensa [itálico meu]: “A sentença caiu num silêncio de morte. Constantino bebeu lágrimas verdadeiras em vez de sopa” [p.57].

É no entanto pela voz da Ti Elvira, enquanto anciã e guardiã da memória, que ficamos a saber da situação das crianças das gerações anteriores, sobretudo no tocante às crianças do sexo feminino:

«Quando em pequena me mandavam para o monte com mais de trinta ovelhas, aprendi a conhecer         os animais. Ninguém me tira da cabeça que eles arranjam maneira de falar uns com os outros... E         alguns de se entenderem com a gente que «semos» os bichos mais «ordinairos» de toda a criação.         Mandavam-me para aquele degredo sozinha e eu tinha de me calar, a comer pão duro com o                molho dos olhos, que é o molho mais amargo que se pode comer. Nem vinagre, nem fel, nem ervas         do campo, sabem pior do que as lágrimas choradas às escondidas, sem ninguém.» [p.47].

E, a seguir, é-nos o retrato comparativo da nova geração, pelo ponto de vista da Ti Elvira, a quem os jovens lhe parecem preguiçosos e mimados, face às agruras da própria infância. A Ti Elvira não se apercebe de que existem forças transformadoras na sociedade que exigem a possibilidade de uma nova concepção da infância:

«Vocês hoje são todos uns fidalgos!...Eh! Eh! Uns senhores reizinhos da família...No meu tempo era só trabalho e porrada...Agora trazem-nos tanto nas palminhas que os filhos mandam nos         pais.» [p.48].

4. O tratamento dado às mulheres na obra - a questão da violência doméstica

No seguimento do ponto anterior, e após conhecer o PDV da avó em relação à infância, torna-se necessário olhar para a obra na perspectiva do tratamento e imagem que é deixado transparecer em relação às mulheres, que vão sendo mencionadas ao longo da narrativa.

No início da primeira parte  - “Um cuco Rambóia” - o capítulo intitulado ‘Pequeno labirinto de nomes e alcunhas’, a situação da condição feminina está patente na tentativa de justificar o porquê de a mãe de Constantino ter escolhido, embora não sozinha, um nome tão imperial e tão fora da genealogia familiar. A intenção de escolha prende-se, em primeiro lugar, com as expectativas de futuro para o filho - para aproximá-lo um pouco de quem é ‘grande’, como o Imperador, o que deixa entrever na mãe de Constantino uma certa insatisfação com a sua condição social. Depois, um nome tão invulgar na família, serve para se distinguir dos restantes homens do clã, evitando-se gerar confusões na hora de se lhe dirigir ou de o mencionar. Mas mais importante ainda, elimina-lhe um problema de atribuição de um derivativo do nome para o distinguir de outros familiares homónimos, facto que que lhe poderia causar sérios conflitos e torná-la inclusive alvo de violência, como uma outra mulher que conheceu em tempos:

«Por voto do padrinho e assentimento dos pais, recebeu no registo o nome de Constantino. É um             nome bonito, sim senhor. Na aldeia não há outro igual, e isso é bom, pensou a mãe; escusa uma             pessoa de matar a cabeça como em certas casas em que os homens usam o mesmo nome e                     ninguém se entende. Na Chamboeira conheceu ela uma mulher, a Ti Pirralha, metida num inferno         de portas adentro por causa de o marido, o filho e o neto se chamarem António. Enquanto o rapaz             foi pitorro, tudo correu bem. Um era o António Grande, o outro só António e o mais novo o                     António Pequeno. O rapaz, porém, deitou muito corpo, e depressa, enquanto o avô continuou                 cartaxinho, cartaxinho e melindroso, pois começou a pôr-se de vidro fino,  quando a mulher lhe             chamava Grande, vendo nisso uma artimanha dela para se vingar de certas desfeitas que lhe fazia          quando bebia um copo a mais.
“Grandes são os burros”, refilava então o velho, muito rezingão, com o reumático nas cruzes, umas          dores parvas como dentadas de lobo. Mas andou tudo raso naquele casal quando a Ti Pirralha o             tratou por António Velho para chamar Novo ao neto, o que incendiou o marido, e de tal jeito que a           mulher se teve de esconder três dias na casa de uma vizinha.
“Velhos são os trapos!”, gritava o António Pirralha chamando Corja ao povo inteiro de sua   aldeia - que não gostava muito dele, valha a verdade.

Foi isto mais ou menos que a mãe do Constantino lembrou ao marido para defender o nome escolhido pelo compadre. Constantino era um nome bonito para rapaz, devia ser um nome de                cidade, e já que um pobre não tem luxo, ao menos que na graça seja igual aos outros.» [p.9-10].

5. A caracterização Psicológica de Constantino
A construção do retrato psicológico do protagonista é-nos dada quer de forma directa, pelas outras personagens - por exemplo, a mãe quando diz que o filho é muito senhor do seu nariz’ -, mas que implica quase sempre um juízo de valor das mesmas, quer pela descrição das suas atitudes, deixando o leitor julgar por si. Estas atitudes de Constantino, muitas vezes comportam um teor mais ou menos elevado de violência, sobretudo psicológica, que se repercute em repostas desabridas e reactivas, raiando a má-criação. Estas reacções têm no entanto um contexto: elas nascem a partir da forma como é tratado pelos adultos, que não sabem educar mas apenas repreender, humilhar física e psicologicamente - a rispidez dos adultos e sobretudo da avó roça, na maior parte das vezes, o abuso emocional. E a reacção de Constantino é, normalmente, embora nem sempre, consequência directa deste tratamento abusivo, transformando-o a ele próprio no abusador como se vê na cena protagonizada por ele e pela irmã mais nova, Ana Maria, como veremos mais adiante. Mesmo assim, o abuso face à irmã é despoletado pelas atitudes dos adultos, sendo a avó a que usa os discurso mais áspero com o neto:

«A conversa com a Ti Elvira é mais ou menos a mesma.
        ◦ Não ouviste chamar por ti, moço?
        ◦ S’ouvisse não vinha logo?
        ◦ Então és surdo...Tão pequeno e já surdo.
        ◦ Isso é que não, surdo não sou...
Constantino sabe que os velhos têm o ouvido duro; a mãe diz-lhe, por outro lado, lá porque em                 casa não se dá muito à risota, que parece um velho, que é rabugento como um velho. E ele não             gosta dessas brincadeiras, porque um velho está mais perto da morte, e prefere não pensar que             terá de morrer um dia...
Então refila:

        ◦ Mas não sou surdo...a avó é que podia gritar mais alto...
        ◦ Só se gritasse tanto que me ouvissem em Bucelas...Vinha aí o povo todo, julgando que me estavam a matar.
        ◦ Porque é que a avó não se põe do lado do vento?
        ◦ Porque tu te punhas logo do lado da chuva: andas sempre ao contrário.
        ◦ Cale-se para aí, mulher!» [p.11-12].


E como este há bastante mais exemplos no texto. Mas o processo de construção da personalidade de Constantino é ainda mais complexo: faz-se não somente por reacção a outros comportamentos, mas também por modelagem, remetendo-nos para o que foi dito anteriormente no ponto quatro, para uma sociedade estruturada segundo o género e em que o género masculino é moldado para exercer o domínio sobre o género feminino. A forma como as mulheres são desvalorizadas dentro deste tipo de sociedade onde o seu valor só é reconhecido dentro do espaço doméstico - e mesmo assim sob a autoridade do marido quando em casa - pela esmagadora maioria da população masculina adulta ajuda também esculpir as atitudes de Constantino face a todas as figuras femininas que surgem na narrativa. Em primeiro lugar, em relação à avó, como acabámos de ver; depois, à mãe; às lavadeiras no rio; e sobretudo à irmã mais nova, Ana Maria, cuja voz nunca se manifesta explicitamente no texto e cujo sorriso Constantino se esforça por apagar, logrando o seu objectivo de forma bastante eficaz e com um único enunciado que surte efeito imediato:

«Para não lhe atirar com um cavaco acima, a Ti Elvira acena a cabeça, conformada, e volta para a         lida, enquanto a neta, a Ana Maria, mais nova do que Constantino cinco anos [tem, portanto, sete             anos] os espreita da janela e sorri, fechando os olhos e mostrando a boca quase desdentada. O                 rapaz afina. Joga as palavras como pedras de uma atiradeira [fisga]:
        - Achas graça?!...Vê lá se te cai o resto dos dentes. Ficas como a avó...
A Ana Maria depressa fecha a boca, compõe o cabelo loiro que lhe cobre a testa, alta, e finge não             ouvir o irmão.» [p.12].

O resultado do tratamento dos adultos face à criança e de um exemplo de uma conduta muito pouco ou nada exemplar e ainda menos pedagógica que são passados às crianças fazem de Constantino uma criança irascível, taciturna e vingativa, como se vê no episódio junto ao rio, com as lavadeiras, ou do jovem forasteiro com a bicicleta. Mas o corolário é mesmo o abuso verbal a que submete Ana Maria, a irmã cuja voz nunca se manifesta no texto e de quem só percebemos as consequências da violência verbal do irmão mais velho pelas atitudes externas, como se vê no excerto acima citado. Constantino passa a exercer ele próprio violência verbal ou física sobre quem é mais frágil (os animais, como veremos na secção seguinte, no ponto 6), vulnerável ( como a irmã, de quem tem ciúmes), sobre quem é diferente (o jovem da cidade, de quem cobiça a bicicleta) ou está em desvantagem (as lavadeiras no rio que afugenta, à pedrada para poder nadar à vontade).


6. O tratamento dado aos animais pelo protagonista

A forma como Constantino trata os animais é também reflexo de uma sociedade violenta que não considera os animais seres ‘com alma’. Mesmo assim, há quem veja em Constantino uma impiedade face aos seres indefesos, como é paradoxalmente o caso da Ti Elvira, como veremos no ponto 6.2. ao explorarmos o episódio dos pintassilgos. Esta secção explora dois exemplos de repressão de seres que não têm ‘voz’ e são olhados pela sociedade de então como não tendo direitos, como todos aqueles que estão na posição de dominado. O facto de este tipo de atitudes em relação a crianças e animais ser explorado de uma forma tão livre e explícita por Alves Redol, usando a voz do narrador de Constantino e a das personagens, tanto em discurso directo como em discurso indirecto livre e até em Quasi-PEC (forma híbrida de narração onde, segundo Alain Rabatel) é quase impossível distinguir se o fluxo de pensamentos é imputável ao narrador ou às personagens), mostra que este tipo de situações era considerado como normal entre as gentes do povo, uma vez que o livro não foi sequer apreendido pela censura ou interdita a sua publicação em 1962. O autor não faz nenhum juízo de valor no texto, limitando-se a expor situações do quotidiano, cruzando as diversas vozes e perspectivas, mediadas pelo narrador, que mantem o máximo de fidelidade possível ao discurso local da gentes dos campos e campinas Ribatejanos.
Os animais aqui se não têm voz têm, pelo menos, atitude e dividem-se entre dois tipos: os que obedecem e os que resistem. Há ainda um terceiro tipo, que são aqueles que colaboram na opressão, como os cães de caça, que tudo indica tratar-se de uma alegoria à PIDE, que passou absolutamente indetectável à censura. O cão, quando deixa de obedecer e de procurar a constante aprovação pelo dono e opressor é morto por este.

6.1. Cães, peixes, vacas e outras bestas.

A tentativa de domínio das bestas por Constantino é quase sempre alvo de oposição por partes das mesmas. Com uma única excepção: os cães, como já foi referido. Segundo a Ti Elvira, “Os olhos dum cão não enganam”(p.46). Os cães colaboram com os humanos no exercício do domínio destes face a outros animais, como é o caso das ovelhas, que fogem à Ti Elvira- A função dos cães é servir o dono e meter as ovelhas na ordem (tal como a PIDE servia Salazar ao controlar os dissidentes). A Ti Elvira irrita-se em desespero com a rebelião do supostamente tranquilo gado ovino:

«Pareciam doidas, com o Belzebu no corpo, a borregar e a correr, de tal jeito que levantavam uma         nuvem de poeira , como se fosse uma manta de nevoeiro caída em cima da gente.» [p.47].

São depois os cães que fazem o trabalho ‘sujo’ de as reconduzir ao curral para agradar à espécie dominante. Não há também aqui qualquer juízo de valor textual, no discurso do narrador. Só se percebe o papel do cão junto da espécie humana, aqui, ao compararmos com a atitude dos restantes animais, como veremos a seguir.

«Fora o Tunante, que guarda o curral das vacas, e o Lisboa, que é arraçado de perdigueiro e tem faro especial para levantar perdizes, há ainda a Rasteira, uma cadela amarelada, de perna curta e orelha graúda, companheira de Constantino por toda a parte, vá ele à folha de cana para as vacas ou as leve a beber água à fonte, se meta no rio a pescar ou ande perto de casa a imaginar distracção.
(...)
A Rasteira acha-se com certos direitos.
(...)
A cadela de perna curta sabe dar amizade e da fiel, mas também gosta de se ver retribuída nas suas inclinações» [p.49-50].

Mais adiante o narrador reforça ainda mais esta perspectiva do cão ao serviço da opressão e submissão dos outros animais ao homem:

«Mas o jeito de Constantino para os animais fica-se pelos cães e por uma das vacas, a Mimosa [a             única submissa, mas não opressora, como a Rasteira, em relação aos peixes, como veremos mais             adiante]. Com as burras, a coisa sai-lhe sempre torta», [p.51].

Constantino, ao contrário da Ti Elvira que conquista os animais com comida, tenta sempre dominar a desobediência usando a repressão e a violência, na burra e noutros animais, como faz a professora nas aulas a ele próprio e aos alunos que não aprendem, à vergastada e à reguada. E, quando  não consegue ser imediatamente obedecido, tem ataques de fúria como o que se segue:

«Mas a Janota que mais parecia uma árvore fantástica e andarilha, tomava o bramar do dono por             incitamentos, e logo se largava mais, e mais, e tanto que numa curva da estrada atirou por terra             com a maior parte do carrego.
Foi ali mesmo uma feira de chinfrins.
O rapaz estava zaranza. Atirou com o chapéu de palhiça ao chão, foi-se à burra e socou-a entre as orelhas, largou-se aos pontapés ao monte de folhagem e cortava o ar com todo o repertório         de palavras pesadas que aprendera desde menino. Andou naquele sarilho um tempo sem conta,                como se precisasse de se esgotar.» [p. 78].

Na verdade, os animais não são apenas zurzidos por Constantino mas por quase toda a comunidade que acha que a desobediência se pune com violência, no tocante ao gado ovino, caprino, bovino, asinino ou equestre. Exemplo disto, no texto, são as vacas que fogem ou se pegam por questões territoriais. O castigo deste comportamento é o espancamento ou o matadouro.


Por outro lado, os peixes também se rebelam contra Constantino, escapando-se-lhe corajosamente de um anzol ou astutamente da armadilha de canas no rio, como se vê nos dois excertos que se seguem. Veja-se aqui o papel que ocupa a ‘fiel’ cadela Rasteira:
«Vêem-se passar as bogas, os bordalos ou os barbos, com os seus bigodes de gato, e aí começam as ansiedades: pega não pega, de repente o peixe vai direito ao anzol, abre a boca, arrepanha-se logo o coração do pescador e então é vê-lo morder na isca, comê-la e borrifar-se para         o anzol, safando-se com um sacão, ou ficar preso e agitar-se a sacudir o rabo a contorcer-se. E,            num golpe rápido de braço, ergue-se a cana para recolher a linha com a mão, arrancando o peixe às         convulsões e atirando-o para cima da erva, onde acabará aos poucos sob o olhar vigilante da                     Rasteira, que lhe ladra de vez em quando.» [p.82].

Mas com a armadilha da caniçada é que as coisas não correm mesmo nada bem:

«Punham a caniçada de baixo de água, o Constantino ficava na parte mais larga e aconchegava-se         à margem, metendo uma das mãos na casa dos peixes.
(...)
Mas os malditos pareciam pressentidos, os peixes são espertos, olha pois não, já andavam por ali            há um bom bocado e só tinham agarrado uns quatro ou cinco bordalos, apesar de na caniçada                 terem entrado muitos que se esgueiravam depois pela parte mais estreita, à guarda do Salamin                [outro dos cães]. Aquilo começava a danar o Constantino.» [p.84].


6.2. Os Pintassilgos - Liberdade ou Morte

Os únicos seres que de facto conseguem derrotar Constantino e o seu instinto de domínio e posse, ainda que à custa da própria vida, são os pintassilgos que preenchem um dos episódios mais dramáticos da novela, como as personagens de uma tragédia antiga ou de uma história de Kazantzakis.

A beleza e a fragilidade aliados ao canto sublime dos pássaros cativam Constantino e os amigos de brincadeiras e tropelias. Em Constantino, não é o amor aos pássaros que o motiva a acolhê-los e a cuidá-los mas sim a vaidade, o desejo de criar a admiração e a inveja nos amigos.

Aqui a avó, como que exercendo o papel de pitonisa avisa-o de que pintassilgos presos “não trazem sorte”. O aviso é olimpicamente ignorado por Constantino, como o são os avisos de toda e qualquer cassandrica pitonisa, destituída de estatuto e autoridade.

Constantino, enquanto guardador de ninhos de pássaros selvagens, perde a guerra com aqueles indefectíveis amantes de liberdade, que escolhem a morte face à inevitabilidade de uma vida em cativeiro. Esta atitude das frágeis aves canoras, fazem lembrar um título do romancista cretense Nikos Kazantzakis, Liberdade ou Morte, é o único factor que desencadeia a também única mudança efectiva no comportamento de Constantino, que nunca mais voltará a caçar pintassilgos. O capítulo “Os pintassilgos gostam de liberdade” é um dos mais belos e dilacerantes da obra:

«A gaiola lá estava com os dois pássaros, mas a Ti Elvira comentou com o neto:
        ◦ Os pais deram com eles e foi uma piadeira toda a manhã...Vieram dar-lhes de comer às grades.             Até fazia dó....Deus me perdoe se uma coisa assim não é pecado!», [p.32].

Mais tarde as visitas dos pais aos filhotes tornam-se um hábito, que diverte Constantino:

«Satisfeito consigo andava ele e com razão. Os pintassilgos pequenos já brincavam no cativeiro, os pais traziam-lhes comida nos bicos, e o mundo parecia correr às mil maravilhas                    naquele compromisso da Natureza com um rapaz que era grão-senhor de meio cento de ninhos.»            [p.33].

Mais tarde Constantino decide capturar também os pais e a tragédia acontece. Impossibilitados de procurar comida, os progenitores entram em greve de fome, recusando a submissão ao carcereiro em troca de comida e escolhendo a morte. Uma lição que Constantino não esquecerá.

7. A viagem - uma odisseia

Na última parte, aquela em que o autor melhor expõe a beleza a da sua prosa, é descrita uma viagem sonhada de Constantino, num barco - como Ulisses - que Constantino e os amigos haviam construído. Essa viagem nunca chega a acontecer fora do sonho porque a sorte lhe troca as voltas. Mas realiza-a durante o sono, com todos os perigos e bravatas que lhe são inerentes, mas que por se tratar de um sonho não têm consequências. O leitor facilmente percebe que o barco é demasiado frágil para a viagem longa que pretendiam fazer, descendo o Tejo com um grupo de pré-adolescentes. O autor escolhe então realizar-lhes uma aventura de conteúdo onírico, tornando-a exequível por meio do recurso ao fantástico e ampliando o valor estético e literário da história, criando um forte contraste com o teor marcadamente neo-realista das peripécias anteriores. A mensagem do episódio é a de que a persistência e a realização dos sonhos vale a pena, mas os meios para o fazer devem ser escolhidos com ponderação.

Constantino é pois guardador de várias coisas, incluindo sonhos onde se desenha um futuro, e de ninhos, nos quais vigia a liberdade dos seus ocupantes. Mas também é guardador de vinganças terríveis e implacáveis. Um retrato de uma personagem dual, polémica, que desconstrói uma ideia idílica e romântica da infância.
A história de Constantino é também um eloquente retrato etnográfico, situado num tempo e num espaço específicos, por onde perpassam regionalismos e maneirismos linguísticos locais.

Uma obra que em muitos sítios da Web vemos como indicado para a infância, mas que por tudo aquilo que foi dito nos parece como não dirigido a crianças mas sim aos que têm por missão educá-las, sejam pais, professores ou simples cidadãos que com elas convivam.
Um livro que é sempre bom revisitar para manter viva a memória de um tempo felizmente passado (para a maior parte das crianças e dos pais do tempo presente).



                                                                        















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                                                                        Vila Nova de Famalicão, 25 de Julho de 2022

                                                                Cláudia de Sousa Dias